Dia Mundial da Água

Entrevista – Pedro Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP)

Os dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (SNIS – 2020) revelaram que o Brasil perdeu quatro entre cada dez litros de água tratada, no caminho entre as Estações de Tratamento de Água e o consumidor, por vazamentos, falhas técnicas e desvios (leia mais). Todavia, o desperdício de um dos recursos naturais mais importantes para a vida humana, ocorre também quanto à água in natura.

No Dia Mundial da Água, Pedro Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP), aponta fatores que estão comprometendo as fontes naturais de água no Brasil: poluição, desmatamento da Amazônia, destruição de matas ciliares e garimpo ilegal são outros meios de desperdício de água que merecem atenção e ações de enfrentamento.

#SJ: Para além da saúde da população e outros fatores, focando no recurso natural água, qual o prejuízo decorrente da precariedade do saneamento básico no Brasil?

Pedro: A carência em coleta e tratamento de esgoto é uma questão fundamental, porque envolve a disponibilidade de água. Em muitos casos, os municípios ou as empresas de saneamento são obrigados a fazer investimentos vultosos para buscar água em regiões distantes da área urbana porque a poluição reduziu a disponibilidade do recurso hídrico. Os rios Pinheiros, Tietê e Tamanduateí, em São Paulo, são exemplos disso: cortam a região metropolitana, mas devido à elevada carga de poluentes, não são considerados para o abastecimento urbano.

Então, a questão do saneamento básico, circunscrita à coleta e ao tratamento de esgoto, é de fundamental importância para garantir, do outro lado, outra demanda do saneamento, que é a oferta de água tratada para a população.

#SJ: Moradores de áreas ribeirinhas do Rio Tapajós (PA) estão contaminados por mercúrio, como revelou pesquisa da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). A Polícia Federal, em investigação contra o garimpo ilegal, verificou que a coloração das águas do rio, na região de Alter do Chão, está alterada, também por contaminação de mercúrio. As bacias hidrográficas da Região Norte estão ameaçadas pelo garimpo?

Pedro: A ameaça é maior na Região Amazônica, mas também está presente em outras áreas e preocupa muito a ocorrência disso na Região Centro-Oeste e no Cerrado, onde estão nascentes de vários rios que alimentam bacias importantes; não só bacias que estão no Norte e no Nordeste, mas também na Região Sudeste. A mineração ilegal tem o potencial de causar um dano bastante significativo, porque interfere diretamente nos cursos da água e o transporte desses contaminantes acaba ocorrendo por longas distâncias. Em síntese, no Brasil, o garimpo ilegal e a contaminação de rios, lençóis freáticos e outros corpos d´água é preocupante e ocorre nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, com potenciais consequências para a Região Sudeste.

#SJ: A Região Sul do País acaba de passar por um período de seca bastante severa. Curitiba vem enfrentando dificuldade de garantir água para abastecer a região metropolitana há dois anos. O que está acontecendo?

Pedro: No Sul do país, isso está relacionado, em princípio, com a ocorrência do fenômeno La Ninã, desde o final de 2020. Nós tivemos um primeiro evento, que terminou no final do primeiro semestre do ano passado, e depois voltou no último trimestre, também do ano passado.

Por outro lado, eu acredito que essa estiagem no Sul está mais intensa por conta da redução de chuvas que vêm da Amazônia, embora a Região não seja exclusivamente dependente dessa chuva, pois também é alimentada pelas frentes frias que vem do sul do continente e ajudam a reduzir o impacto em períodos de estiagem.

As chuvas que vêm da Amazônia alimentam não só a região central do Brasil, mas também a Região Sul, passando por Paraguai, Uruguai e norte da Argentina.

#SJ: E qual é a importância da Mata Atlântica para a boa manutenção do regime de chuvas do País?

Pedro: Se analisarmos os reservatórios que temos em São Paulo, todos deveriam estar cercados pela Mata Atlântica. O que acontece é que, com a redução dessa cobertura vegetal, há comprometimento da contribuição das nascentes. Ou seja, há a questão climática mais ampla e o comprometimento do entorno dos mananciais, que acabam ficando mais suscetíveis aos eventos climáticos extremos. Sem a proteção de matas ciliares, perde-se boa parte da capacidade de resiliência de rios e reservatórios.Pedro -Se analisarmos os reservatórios que temos em São Paulo, todos deveriam estar cercados pela Mata Atlântica. O que acontece é que, com a redução dessa cobertura vegetal, há comprometimento da contribuição das nascentes. Ou seja, há a questão climática mais ampla e o comprometimento do entorno dos mananciais, que acabam ficando mais suscetíveis aos eventos climáticos extremos. Sem a proteção de matas ciliares, perde-se boa parte da capacidade de resiliência de rios e reservatórios.

Nós temos reservatórios com o entorno muito ocupado, como é o caso de Guarapiranga. Caso em que, além do desmatamento, há despejo de esgoto urbano, precarizando a saúde ambiental do reservatório e tornando-o muito suscetível às mudanças climáticas.

Embora seja evidente que a preservação da Mata Atlântica é primordial para a proteção da água, infelizmente, o que constatamos é o comprometimento desse bioma na região metropolitana de São Paulo, especialmente por meio da implantação de condomínios ou ocupações, por vezes irregulares, sem qualquer ação efetiva por parte do Poder Público.

#SJ: Em termos globais, há preocupação com a disponibilidade de água em quantidade suficiente para atender a população humana?

Pedro: A água é um bem mineral que tem uma característica importante: ela não se perde e está sendo constantemente reciclada pela natureza. O que preocupa na verdade são dois fatores.

O primeiro é a grande quantidade de poluentes e de corpos d’água poluídos. No fim, embora haja disponibilidade de água, muitas vezes está poluída em níveis que impedem o seu aproveitamento.

O outro problema está relacionado à questão das mudanças climáticas. Conforme os relatórios do IPCC 2021 (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), há uma tendência de formação de longos períodos de escassez, intercalados com períodos de chuvas muito intensas. Essa distribuição irregular das chuvas acaba impactando muito no abastecimento e no uso da água para cultivo.

#SJ: O relatório do IPCC 2021 apontou a preocupação com algumas regiões do planeta que estão sofrendo processos de desertificação, inclusive no Brasil. Há risco de um novo ciclo, neste século, de grandes fluxos migratórios em função de secas?

Pedro: Atualmente, não se identifica esse tipo de movimento, mas não se descarta a ocorrência disso no futuro, não apenas na região Nordeste, mas também no Cerrado e Região Centro-Oeste, onde o déficit hídrico vem se acentuando, especialmente em decorrência da redução das chuvas vindas da Amazônia, por conta do desmatamento. Então, é possível que isso ocorra futuramente, mas no momento ainda não há nada que indique isso.

#SJ Por outro lado, tragédias com chuvas e tempestades severas estão se repetindo em algumas localidades do País, como em Petrópolis (RJ). É possível que cidades sejam abandonados por conta disso, excesso de chuvas?

Pedro: Mais uma vez, não é um movimento que se identifique atualmente. É claro que há situações pontuais, em que há pessoas que mudaram porque sofreram esses impactos no começo do ano, não só em Petrópolis, mas também em Minas Gerais e na Bahia. Mas ainda não há um movimento grande de transferência de população de uma área para outra, pelo menos nesse momento. Todavia, eu não descartaria esse tipo de situação.

#SJ -No plano das mudanças climáticas, uma questão que diz respeito a nossa relação com a água é a elevação do nível dos mares. Já há impactos na costa brasileira?

Pedro: No Rio de Janeiro, quando há chuvas muito intensas na capital, várias áreas permanecem inundadas por muitos dias, porque há uma dificuldade natural de escoamento, porque os rios acabam ficando “afogados” exatamente pela elevação do nível do mar. Mesmo a elevação de alguns centímetros é suficiente para reduzir o volume escoado por esses rios.

E há outras regiões na costa brasileira onde o mar tem avançado, seja por conta da elevação do nível do oceano, seja por obras que interferem no fluxo de marés, ou ainda o fluxo de correntes que acabaram causando a erosão de áreas que antes eram habitadas.

Há várias regiões do Brasil que sofrem as consequências da elevação do nível do mar. Boa parte da população tem a impressão que os problemas virão de forma repentina, mas não, trata-se de fenômeno que está ocorrendo de forma paulatina e constante, causando danos. Infelizmente, há municípios costeiros que não têm uma política pública voltada para isso, prevendo esse tipo de situação.

#SJ: No caso do Brasil, a água é uma componente central da nossa matriz energética. Após a crise hídrica de 2021, é possível apontar a repetição das dificuldades com os níveis dos reservatórios de hidrelétricas?

Pedro: Eu orientei uma pesquisa de mestrado que mostrava uma redução do volume de chuvas na região central do Brasil, prejudicando o nível de operação de várias hidrelétricas que vêm sofrendo com uma queda do volume afluente da água, que chega naturalmente nessas barragens, ao longo da última década.

Reservatórios com a finalidade de abastecimento humano também passam por esse problema. O sistema Cantareira, na região metropolitana de São Paulo, vem apresentando um déficit de chuvas ao longo dos últimos 10 anos: somente em um ano houve superávit de 5%; enquanto houve, com frequência, temporadas com déficits de 30% de chuvas.

Por outro lado, estações chuvosas muito intensas têm sido esporádicas, o que tem o poder de reverter momentaneamente a tendência negativa de baixa dos reservatórios; mas segue se mantendo a tendência verificada nos últimos 12 anos mais ou menos, por conta da redução de chuvas que vem da Amazônia.

Essa situação não se mostra como algo temporário e, a permanecer essa tendência, será necessário rever a forma de atuação ou de operação de algumas usinas hidrelétricas, diante da disponibilidade de água, que já não é a mesma do século passado: passamos a ter intervalos de longos períodos de estiagem que podem comprometer o uso dessas hidrelétricas.

A nossa matriz energética, que é muito baseada em hidrelétricas, pode ser seriamente impactada diante das mudanças climáticas e alterações do padrão de distribuição das chuvas.