O ato jurídico perfeito e o novo Decreto 11.030, de 1º de abril de 2022

Por Wladimir Antonio Ribeiro e Laís Ribeiro de Senna, advogados da Manesco Advogados

Dos 5.570 municípios brasileiros, em aproximadamente 3.600 (cerca de 65%) os serviços de saneamento são prestados por empresas contratadas. Na prestação contratada, por volta de 3.100 municípios (55%) tem serviços prestados por companhias estaduais de saneamento, enquanto nos outros 500 municípios os serviços são realizados por prestadores empresas privadas, contratadas mediante licitação. Há, ainda, pouco mais de 20 municípios em que os serviços possuem prestadores públicos, porém com sua atuação complementada por empresas privadas, especialmente mediante parcerias público-privadas. Como se vê os contratos possuem um papel fundamental na prestação de serviços públicos de saneamento básico no Brasil[1].

Todos esses contratos possuem forte proteção pelo sistema constitucional brasileiro. A Constituição Federal assegura o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, várias vezes reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive para os contratos celebrados pelas empresas estaduais de saneamento, celebrados sem licitação e, por isso, sujeitos a uma regulação econômica peculiar (“regulação discricionária”).

Doutro lado, o contrato é a espécie mais conhecida do gênero “ato jurídico perfeito”, ou seja, de negócio jurídico consolidado. A Constituição Federal protege os contratos, inclusive afirmando que eles não podem ser prejudicados por leis novas. Com isso, vale para o contrato a lei que estava em vigor quando o negócio jurídico foi celebrado (tempus regit actum). Ou seja, mesmo que essa lei seja revogada, ela continua regendo o contrato.

O Governo Federal editou o Novo Marco Regulatório do Saneamento (“NMRS”), procurando instituir diversas inovações no setor. Porém, como é evidente, não pode prejudicar os contratos já existentes. Logo, o Novo Marco possui efeitos limitados, até porque, como dito acima, boa parte da prestação dos serviços se realiza em razão de contratos antes celebrados – a maioria decorrente de contratações realizadas na década de 1970, quando estava em vigor o Planasa – Plano de Saneamento Básico, que era a política pública de saneamento do regime militar.

Por isso, para efetivar as mudanças que pretende, o Novo Marco adotou a estratégia de induzir o comportamento dos municípios e dos prestadores, prevendo que o acesso aos recursos federais, sejam os orçamentários, sejam os financiamentos, depende do atendimento de determinadas condições – como, por exemplo, a instituição de estruturas de prestação regionalizada. Essa técnica de a União usar de seus recursos, ou de recursos que administra (por ex., os do FGTS), para induzir comportamentos é tradicional em países federais – os norte-americanos a designam por spending power.

Porém o novo Marco Regulatório criou muitas condições e não previu prazos para que tais novas exigências entrassem em vigor gradualmente. Isso gerou, em um primeiro momento, um “apagão” no acesso aos recursos federais para o saneamento, o que foi sanado por meio do Decreto federal 10.588, de 24 de dezembro de 2020. O mencionado Decreto, até de forma inconstitucional, porque não poderia alterar o conteúdo da lei, adiou a entrada em vigor de várias exigências, viabilizando a fundamental retomada de investimentos com recursos federais.

No último dia 1º de abril, o Governo Federal editou o Decreto 11.030, alterando o anterior. O novo Decreto adia ainda mais a entrada em vigor de várias exigências para o acesso a recursos federais, em especial os relativos à regionalização. E realizou isso de forma seletiva, dando tratamento diferente para determinadas situações – ou seja, escolheu hipóteses em que a condição legal será exigida e as em que tais exigências serão adiadas. Com isso, mais uma vez, se assegurou que os investimentos com recursos federais, ou parte deles, não sejam prejudicados.

Porém, o mesmo Decreto parece ter extrapolado o seu papel. Não satisfeito com o fato de possuir atuação limitada ao spending power, a União quer aumentar seu poder de influência e parece impor limitações e alterações para os contratos, até mesmo recomenda o rompimento de alguns deles, mesmo que isso não tenha qualquer previsão em lei. Aliás, mesmo que previsto em lei, os contratos, como atos jurídicos perfeitos, como se disse, são protegidos das inovações legislativas.

O Decreto não pode obrigar os municípios a romper com contratos que obedeceram ao direito em vigor na data de sua celebração se isso não for absolutamente necessário. Romper contratos produz custos com indenizações, o que pode ser altamente prejudicial em determinadas circunstâncias – e o prefeito pode, inclusive, ser punido por improbidade administrativa, caso a rescisão arbitrária de contratos obrigue o erário a pagar indenizações que poderiam ser evitadas. Não há automatismos, e o Decreto ao “forçar a barra” pode causar graves problemas, inclusive prejudicando investimentos em curso.

Há outra inconstitucionalidade. O Novo Marco previu que, no caso de prestação regionalizada, em que os contratos atuais possuem datas de vencimento diversas, que essas podem ser unificadas, para permitir uma licitação, no futuro, de todo um bloco de municípios, de forma a impedir que as cidades mais pobres sejam prejudicadas – ou seja, os municípios “ricos” devem ser licitados em conjunto com os municípios “pobres”.

No entanto, o Decreto impôs que a data de unificação não pode ultrapassar três anos da data do instrumento de dilação ou diminuição de prazo. Não se sabe o porquê de três anos, e esse limite não está previsto na lei. Decreto meramente regulamentar não pode criar obrigação ou limitação que não prevista em lei. Além disso, o prazo de convergência deve ser técnico, estabelecido pelos estudos econômicos. Por exemplo, se há contratos que vencem entre 2038 e 2043, é legítimo que termo aditivo, celebrado hoje, unifique os prazos em 2040.

O Novo Marco do Saneamento é um caminho que traz muitas lições. Mas não se pode esquecer que o desejo de mudança não pode prejudicar os contratos existentes. Não cumprir contratos abala a confiança do mercado e prejudica os investimentos. Doutro lado, não é postura adequada fomentar o rompimento de contratos, estimulando conflitos que, ao se transformarem em longos e penosos contenciosos judiciais, não contribuem com a universalização dos serviços públicos de saneamento básico. O saneamento básico é um serviço municipal, e a União possui por papel apenas orientar e fomentar os serviços, especialmente mediante transferência de recursos. Respeitar a Constituição Federal e o papel que ela prevê para cada um é o que, efetivamente, fará o saneamento básico avançar. Não se deve desviar do caminho, porque buscar “atalhos” pode colocar a perder boa parte dos esforços até aqui realizados.


[1] Números aproximados obtidos pelo SNIS, de 2020, e pelo Panorama da Participação Privada no setor de Saneamento, 2021, da Abcon. Disponível em: https://www.abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2021/07/PAN21-APRESENTACAO.pdf